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A LITURGIA, MOMENTO HISTÓRICO DA SALVAÇÃO
NAS CONFERÊNCIAS DO CELAM
EM MEDELLIN, PUEBLA, SANTO DOMINGO E APARECIDA
Dom Armando Bucciol
Introdução.
Em sua
palestra o prof. Andrea Grillo dizia que para acolher e entender o Concílio é
preciso “elaborar
‘linguagens
diferentes’ (O’Melley): o Concílio comporta uma conversão de linguagem que
é,
talvez, a
empreitada mais exigente para esta e as próximas gerações” e apontou “quatro
coisas a não
serem
esquecidas”, isto é, a) a liturgia é ação ritual, b) é experiência de comunhão,
c) é tempo festivo /
doado, d)
enfim é fons et culmen.
A partir
dessas sugestões, analisei os Documentos das quatro últimas Conferências do
Episcopado
latino-americano. O que estes importantes eventos eclesiais disseram no
que se refere a
dimensão que
estamos considerando, isto é, A liturgia qual momento histórico da salvação?
Falando a
Cultores e Professores de Liturgia, dispenso-me de aprofundar conceitos. Minha
colocação
pretende
captar a ressonância conciliar nos Documentos das Igrejas do Continente, qual
proposta de
recepção criativa e inculturada.
Observava
ainda o prof. Andrea, que a recuperação do conceito de Liturgia (L.) como “continuidade
com a obra
de salvação”, pede que se recupere, mais do que a noção teológica, “as
condições
antropo-teológicas
da sua verdade”. Neste sentido, as Conferências do Episcopado latino-americano
e caribenho,
procuraram usar uma linguagem muito em sintonia com a vida e a história de
nossos
povos. Essa
dimensão histórica da salvação, que se fundamenta na Páscoa de Cristo, encontra
sensibilidade
específica
na leitura teológica e pastoral de nossos documentos.
Até que
ponto as orientações dadas pelas quatro Conferências foram e estão sendo
recebidas,
deixo à
avaliação competente e experiente de todos. Com certeza, muito e positivamente
se caminhou,
mas, também,
longo caminho nos resta a fazer. Ainda mais que é-nos exigido muito cuidado
para não
esquecer os passos dados e voltar atrás, ignorando o que nestes últimos
decênios foi amadurecido
e
conquistado.
1. O que é Liturgia?
O Documento
da última Conferência que aconteceu em Aparecida (Ap) (maio de 2007)
destaca
a dimensão pascal
da L. e aponta o mistério pascal qual elo unificador da L. e da vida
eclesial.
Nele a
Eucaristia é considerada em sua identidade teológica, litúrgico - celebrativa,
espiritual, devocional
e
existencial. Escrevem os bispos: “Encontramos Jesus Cristo, de modo admirável,
na Sagrada
L. Ao
vivê-la, celebrando o mistério pascal, os discípulos de Cristo penetram mais
nos mistérios
do Reino e
expressam de modo sacramental sua vocação de discípulos missionários” (Ap 250).
Logo
em seguida,
se lê: “A Eucaristia (é) lugar privilegiado do encontro do discípulo com Jesus
Cris2
to... de tal
modo que a existência cristã adquira verdadeiramente forma litúrgica”1. Por isso, “a Eucaristia,
fonte
inesgotável da vocação cristã é, ao mesmo tempo, fonte inextinguível do impulso
missionário”
(Ap 251). A partir da Eucaristia – Liturgia, decorrem afirmações de forte
espessura
teológica
que definem exigências e estilo do testemunho e do anúncio missionários.
Este
pensamento é expressão teologicamente madura de uma longa caminhada de reflexão
e de
empenho
cristão. Por isso, vale a pena relembrar o que dizia sobre L. o I dos 4
importantes documentos
que
consideramos: as Conclusões de Medellín (1968). Um dos 16 temas
tratados, o 9, é
Liturgia2.
A ideia de
L. é expressa nestes termos: “A presença da salvação, enquanto a humanidade
peregrina
até sua
plena realização na parusia do Senhor, culmina na celebração da L. eclesial
(cf. SC 8 e
10)”.
Respira-se ainda muito viva a influência conciliar. As referências a SC e
outros textos conciliares
são
constantes, sobretudo LG. Por ex., outra frase síntese: “Como não vivemos ainda
a plenitude
do Reino
(cf. LG 3 e 5), toda celebração litúrgica está essencialmente marcada pela
tensão entre
o que já é
uma realidade e o que ainda não se verifica plenamente (cf. LG 48 e SC 6)”; “A
L., momento
em que a
Igreja é mais perfeitamente ela própria, realiza, indissoluvelmente unidas, a
comunhão
com Deus e
entre os homens (cf. LG 1 e SC 47), e de tal modo, que aquela é a razão desta”3.
O documento
de Puebla (P.) – 1979 - trata o assunto “Liturgia” num longo parágrafo
(895-963)
que começa
assim: “A oração particular e a piedade popular, presentes na alma do nosso
povo,
constituem
valores de evangelização; a L. é o momento privilegiado de Comunhão e
Participação
para uma
Evangelização que conduz à libertação cristã integral, autêntica” (P. 895).
Em Santo
Domingo (SD) – 1992 – se lê: “O culto cristão deve expressar a dupla
vertente da obediência
ao Pai
(glorificação) e da caridade com os irmãos (redenção), pois a glória de Deus é
que o
homem viva.
Com o qual longe de alienar aos homens, os liberta e os faz irmãos” (SD 34). A
preocupação
‘atualizante’
retorna com insistência. Por ex. quando se escreve: “O serviço litúrgico tem
por si
mesmo, um
valor evangelizador” e “a Nova Evangelização deve situar-se em lugar de
destaque. Na L.
faz-se
presente hoje Cristo Salvador. A L. é anúncio e realização (cf. SC 6) dos
feitos salvíficos que
nos chegam a
tocar sacramentalmente; por isso, convoca, celebra e envia”; “a celebração não
pode ser
algo separado
ou paralelo à vida” (SD 35).
De Aparecida,
destaco ainda, a centralidade dada à ação e à experiência de Cristo que “introduz
o
cristão numa
profunda e feliz celebração dos sacramentos, com toda a riqueza de seus sinais.
Desse modo,
a vida vem
se transformando progressivamente pelos santos mistérios que se celebram,
capacitando
o cristão a
transformar o mundo” (Ap 290); ainda: “O discípulo, em cada celebração
eucarística4, renova
sua aliança
de amor” (Ap 350).
Concluo a
leitura dos Documentos a respeito deste primeiro aspecto, retomando as palavras
do
prof.
Grillo: “A L. é experiência de comunhão” – dizia - e, por isso, “mostra os
limites de toda captura
privatizante
e publicitária”.
A análise
dos Documentos evidencia uma sensibilidade marcadamente atenta às dimensões
comunitárias,
sociais e
até políticas da fé e de sua expressão fundamental, a L. Esta, numa análise
unitária e
abrangente,
é chamada a caminhar em sintonia e harmonia com o testemunho de uma vida
impregnada
de
solidariedade e amor, em busca da libertação plena de cada pessoa e dos povos.
2. Qual a situação da L. em nosso Continente?
Medellín abre com palavras quase desanimadoras. Observa que se em
algumas regiões houve
crescentes
esforços para a renovação litúrgica, em outras ainda está fraca e em geral é “insuficiente”.
“Falta uma
mentalidade sobre o conteúdo da reforma”; “tem-se a impressão de que o bispo
nem
sempre
exerce de forma eficaz seu papel litúrgico”; “a L. não está integrada
organicamente na educação
religiosa”.
É interessante retomar este “ponto de partida” quando avaliamos hoje nossa
realidade.
Em Puebla
os bispos já reconhecem que, uns 15 anos após o início da reforma litúrgica
“a renovação
está dando
resultados positivos”; isso favorecido por vários elementos5 e facilitada “pelo
idioma
comum, a riqueza cultural e a piedade popular” (P. 898). Logo, recordando SC
37-40, aponta-
se “a
necessidade de se adaptar a L. às diversas culturas e à situação de nosso povo
jovem, pobre
e humilde”
(P. 899). Porém, acrescentam-se mais duas observações críticas: “A participação
na L.
não
repercute de forma adequada no compromisso social dos cristãos. A instrumentalização
que,
por vezes,
se faz da mesma, lhe desfigura o valor evangelizador” (P. 902)6.
De Puebla a Santo
Domingo se passaram 12 anos. Como procedeu a reforma litúrgica? Foram
dados passos
para frente? SD assim avalia: “Muito resta a ser feito tanto para assimilar em
nossas
celebrações
a renovação litúrgica desencadeada pelo Concílio Vaticano II, como para ajudar
os fiéis
a fazer da
celebração eucarística a expressão de seu compromisso pessoal e comunitário com
o Senhor.
Ainda não se
alcançou plena consciência do que significa a centralidade da L. como fonte e
cume da vida
eclesial” (SD 43).
No documento
de Aparecida, retorna uma dolorida constatação já presente nas outras
Conferências,
isto é, a
existência pelo Continente afora de “milhares de comunidades com seus milhões
de membros,
que não têm a oportunidade de participar da Eucaristia dominical” (Ap 253), “privadas
... por
longos períodos de tempo” (Ap 100 e). Mas uma carência maior, que se reflete
também na
escassa
consciência e participação litúrgica, consiste na falta de formação de boa
parte dos nossos
católicos.
De fato, “são muitos os cristãos que não participam na Eucaristia dominical nem
recebem
com
regularidade os sacramentos”... “Temos alta porcentagem de católicos sem a
consciência de
sua missão
de ser sal e fermento no mundo, com identidade fraca e vulnerável” (Ap 286).
Trata-se
de uma
realidade a todos conhecida. A escassa compreensão e participação na L., então,
não se cura
sem esta
formação que deve ser realizada no estilo da Iniciação, compreendendo a mistagogia
(cf.
Ap 290).
3. Peculiaridades e acentuações na vivência da L.
Medellín destaca o valor da celebração litúrgica; de fato, ela
apresenta, “mediante o conjunto
de sinais
com que expressa a fé”, diferentes e importantes valores7. Acentua-se a necessidade que “a
celebração
litúrgica comporta e coroa um compromisso com a realidade humana (cf. GS, 43),
com o
desenvolvimento
e com a promoção, precisamente porque toda a criação está envolvida pelo
desígnio
salvador que
abrange a totalidade do homem (cf. GS 41)” (II a).
Em Puebla
a consciência do sentido e das competências específicas da L. adquire uma
definição
mais clara: “A
L. é... um encontro com Deus e os irmãos; banquete e sacrifício realizado na
Eucaristia;
festa de comunhão eclesial, na qual o Senhor Jesus, por seu mistério pascal,
assume e
liberta o
Povo de Deus e, por ele, a toda a humanidade, cuja história é convertida em
história salvífica,
para
reconciliar os homens entre si e com Deus. A L. é também força em nosso
peregrinar,
para que se
leve a bom termo, mediante o compromisso transformador da vida, a
realização plena
do Reino, segundo o plano de Deus” (P. 918).
Pode-se
observar o destaque próprio da teologia e vivência pastoral da época eclesial,
com o
constante
incentivo para unir fé e vida, liturgia e testemunho, história do povo e
história salvífica,
projeto de
Deus que se cumpre dentro do compromisso transformador, também sem nele se
esgotar.
Retoma-se
SC, quando se escreve: “Pelos sacramentos, Cristo continua, mediante a ação da
Igreja,
a
encontra-se com os homens e salvá-los” (P. 923); “a reforma e renovação
litúrgica fomentem a
participação
que conduz à comunhão” (...). “Por isso, as considerações pastorais salva
sempre a observância
das normas
litúrgicas, devem superar o mero rubricismo” (P. 925)8. Existe a busca constante
de
fidelidade à identidade da L., e o firme desejo que tudo sirva para fazer
crescer a vivência
eclesial do
Povo de Deus9.
O documento
de Aparecida dedica muitas páginas à L. e à análise dos Sacramentos
todos, sobretudo
ao Batismo e
à Eucaristia. Falando da vida paroquial se diz que as paróquias devem ser
sempre
mais “comunidades
eucarísticas que vivem sacramentalmente o encontro com o Cristo salvador” (Ap
175a) e que
todo compromisso de solidariedade humana e social encontra na Eucaristia sua
razão de
ser como “exigência
de uma evangelização integral” (cf. Ap 176). Acentua-se, enfim, a urgência de
“promover a ‘pastoral
do domingo’ e dar a ela ‘prioridade nos programas pastorais’ (cf. SD 4)” por
que “sem uma
participação ativa na celebração eucarística dominical e nas festas de preceito,
não existirá
um discípulo
missionário maduro” (Ap 252).
Em síntese,
os votos e desejos das Conferências são claros; suficientemente clara, também,
é a
consciência
do que deve preceder, acompanhar e seguir o momento litúrgico e das dimensões
do trabalho
pastoral.
Nesta História da Salvação que recebemos e da qual, por graça, somos
protagonistas,
temos
grandes responsabilidades. Não adianta ficar nos detalhes se não colhermos o
objetivo geral e o
essencial.
Nossas últimas Diretrizes (D. 37) lembravam uma afirmação de papa Bento XVI: “Não
se
começa a ser
cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas pelo encontro com um
acontecimento,
com uma
Pessoa, que dá um novo horizonte à vida” e, “por sua vez, este encontro é
mediado
pela ação da
Igreja”10. Neste sentido a L. tem um papel fundamental,
indispensável!
4. A inculturação: desafio e compromisso
À dimensão inculturação
aparece desde o documento de Medellín como exigência dentro da
L. e retorna
constantemente, encontrando em Santo Domingo destacada expressão: “Para que a
L.
possa
realizar, em plenitude, seus objetivos”, necessário se faz “adaptar-se ao gênio
das diversas
culturas e
encarnar-se nele” (II,b) (cf. SC 37, AG 22, GS 44); e se recomenda de evitar ”erigir,
a
priori, a
uniformidade como princípio” (cf. SC 37, LG 13).
A
necessidade da inculturação reaparece em Puebla como dimensão
eclesial e com realce especial
da L. As
conclusões recomendam: “Na L., celebrar a fé com expressões culturais,
obedecendo
a uma sadia
criatividade. Promover adaptações adequadas particularmente aos grupos étnicos
e
ao povo
simples (grupos populares)” (P. 940).
O
referencial destas considerações permanece a História da Salvação. Não é
novidade o anseio
constante
que nossa Igreja, Pastores e agentes de pastoral, teólogos e povo de Deus em
geral, têm para
com a praxe,
a vida concreta, a realidade humana, poderíamos dizer com a encarnação da
Palavra.
Nesta
perspectiva as Conferências trabalharam, com um cunho profundamente pastoral.
Neste sentido,
eis uma
urgência: “Nenhuma atividade pastoral pode-se realizar sem referência à L.” (P.
927);
“qualquer
celebração deve ter, por sua vez, uma projeção evangelizadora e catequética,
adaptada às
diversas
assembléias de fiéis” (P. 928); enfim, a L. deve ser celebração da fé qual “encontro
com
Deus e com
os irmãos, como festa de comunhão eclesial, como fortalecimento em nosso
peregrinar e
como
compromisso de nossa vida cristã” (P. 939).
Também SD
deu o deu especial atenção à inculturaçã. Observa-se (SD 248)
que a inculturação
foi escassa
ao longo da história do Continente e, com o papa, se pede perdão “pelos fatos
marcados
pelo pecado,
pela injustiça e pela violência”. Reclama-se que “ainda não se dá atenção ao
processo
de uma sã
inculturação da L.” e, de consequência “as celebrações, para muitos, (são) algo
ritualista
e privado a
ponto de não se fazerem consciência da presença transformadora de Cristo e de
seu espírito
nem de
traduzirem-na em um compromisso solidário para a transformação do mundo” (SD
43).
Santo Domingo reconhece o “valor pedagógico” de “toda a cerimônia
litúrgica de cada sacramento”
11, mas “é especialmente pela L. que o Evangelho penetra no coração mesmo das
culturas” e
pede para
que “as formas da celebração litúrgica devem ser aptas para expressar o
mistério que se
celebra e,
por sua vez, ser claras e inteligíveis para os homens e mulheres”12 (SD 35).
Com o
compromisso de “desenvolver uma evangelização inculturada” se assume, também,
aquele
de “promover
uma inculturação da L., acolhendo com apreço símbolos e expressões religiosas
compatíveis
com o claro sentido da fé, mantendo o valor dos símbolos universais e em
harmonia
com a
disciplina geral da Igreja”, tudo isso, sobretudo, “para com nossos irmãos
indígenas”.
Desde as
primeiras linhas Aparecida acena à inculturação como algo que foi
negado no início
da história
de nossa evangelização, mas Guadalupe foi “pedagogia e sinal de inculturação da
fé”
(Ap 4). Hoje
“esforços têm sido realizados para inculturar a L. nos povos indígenas e
afroamericanos”
(Ap 99b), e
dessa maneira “a Igreja se enriquece com novas expressões e valores,
manifestando
e celebrando
cada vez melhor o mistério de Cristo, conseguindo unir mais a fé com a
vida e assim
contribuindo para uma catolicidade mais plena, não só geográfica, mas também
cultural”
(Ap 479).
Podemos
relevar que as Conferências captam a existência do(s) problema(s), mas a
solução
prática não
é fácil de ser encontrada13.
5. A Piedade popular: entre Liturgia e vida, passado e presente da
Evangelização
A Piedade
popular 14 retorna em todos os Documentos. Chamada com nomes
diferentes - devoções
populares em Medellín – é dimensão importante na vida
cultural, eclesial e espiritual de
nossos
povos. “Sendo tão arraigadas em nosso povo certas devoções populares,
recomenda-se buscar
formas mais
adequadas, que lhes dêem conteúdo litúrgico, de modo que se tornem veículos da
fé e de
compromisso com Deus e com os homens” (cf. SC 13) (3d, 4).
Puebla reconhece que é algo “presente na alma dos nossos povos”
(P. 895) e “nós, bispos, não
podemos
deixar passar despercebida” e “precisa ser estudada com critérios teológicos e
pastorais, para
se descobrir
seu potencial evangelizador” (P. 910). Reconhece-se que “a América Latina está
insuficientemente
evangelizada.
A maioria do povo exprime sua fé prevalentemente na piedade popular“ (P.
911). Dela
P. analisa aspectos positivos (P. 913) e negativos (P. 914)15 e reconhece que ”encerra valores
evangelizadores”
se for iluminada por uma “constante purificação e clarificação” (P. 937). Por
isso, eis a
necessidade de “orientar os sacramentos ao reconhecimento dos benefícios de
Deus e à tomada
de
consciência do compromisso que o cristão tem no mundo” (P. 962). Convida,
enfim, a “apresentar
a devoção a
Maria e aos Santos como realização neles da Páscoa de Cristo (cf. SC 104) e
recordar
que deve conduzir
à vivência da Palavra e do testemunho de vida” (P. 963).
Santo Domingo retoma a exigência de valorizar a piedade popular -
que chama também de religiosidade
popular – insistindo na urgência de purificá-la e abri-la “a novas
situações”, se não “o secularismo
impor-se-á
mais fortemente em nossos povos latino-americano e a inculturação do Evangelho
será mais
difícil” (SD 53).
Em Aparecida
se diz que “a piedade popular é uma maneira legítima de viver a fé, um modo
de se sentir
parte da Igreja e uma forma de ser missionários, onde se recolhem as mais
profundas
vibrações da
América Latina” e “no ambiente de secularização que vivem nossos povos,
continua
sendo uma
poderosa confissão do Deus vivo que atua na história e um canal de transmissão
da fé”
(Ap 264). Acentua-se
o valor da devoção a Maria, sobretudo, celebrada nos grandes santuários de
Guadalupe e
Aparecida: “Maria, reunindo os filhos, integra nossos povos ao redor de Jesus
Cristo”
(Ap 265)16.
6. Anotações finais
Finalizando,
com expressão resumida, podemos dizer que as “nossas” Conferências manifestaram
constantemente
a busca de tornar a história concreta de nossos povos História da
Salvação. A
L. coloca em
nossas mãos esta História para que não fique no passado; ela nós envolve hoje,
pela
presença do
Espírito, a vivermos em plenitude a história atual, repleta de graves
injustiças e contradições
sócio-políticas
e econômicas, qual história da presença salvadora de Cristo. No mistério
pascal
tudo é
iluminado e transformado.
Liturgistas,
Pastores e Pastoras que somos, perguntamos e nos questionamos como isso possa
acontecer de
maneira sempre mais bela e compreensiva, de que modo os ‘votos’ e sonhos do
Concílio,
destacados
pelas Conferências, podem ser encarnados em nossas Igrejas locais.
a) Antes de
tudo, gostaria dizer algo a partir da minha experiência de Presidente em tantas
e as
mais
diversificadas celebrações. Na grande maioria das vezes, nas solenidades da
Catedral como
nas
Comunidades menores e mais pobres, vivo meu ministério com profunda emoção
espiritual e
intensa
participação. Penso, às vezes, se os renomados liturgistas que escrevem belas
teorias estivessem
presentes,
no meio deste povo, simples e humilde, acredito iriam concluir que Deus
continua
revelando-se
aos pequenos e pobres e a L., quando impregnada de fé simples, ingênua alguém
diria,
continua proporcionando uma verdadeira experiência do Cristo vivo. Talvez as
rubricas litúrgicas
nem sempre
sejam observadas perfeitamente – não por desprezo ou desleixo, só por não
conhecimento!
Mas, na
maioria das vezes, tudo acontece numa substancial fidelidade às normas
litúrgicas,
com
espontaneidade e em clima de festa; a atenção é interrompida só pelo choro de
uma criança
(isso também
entra na História da Salvação), ou de um bêbado que celebra o amor a Cristo
com suas
extravagâncias e declarações fora de lugar, ou as briguinhas dos meninos...
Sim, o canto,
de boca
cheia, não está muito afinado, nem os instrumentos que acompanham... Mas,
trata-se de
participação
espontânea e alegre, entre risos e choros, palmas e sintonia. Quando se sai
destas celebrações,
o coração
está repleto de Deus, o Espírito do Ressuscitado se revela vivo em sua Igreja,
a
vida adquire
novo vigor, pode-se recomeçar a labuta cotidiana na certeza de uma presença que
acompanha
e sustenta.
Eis a L. fons et culmen da vida de fé e da vida em sua plena dimensão
antropológica:
Deus não
permanece uma teoria mas se torna experiência humana plena.
b) Na
análise dos Documentos em questão, apareceu algo que todos sabemos, mas nem
sempre
recebe
suficiente destaque. O “ato litúrgico” ou “celebrativo” não pode ser isolado do
resto da vida
eclesial e
cultural. O que celebramos provem e conduz à existência concreta. Quem celebra
é uma
pessoa com
sua história, que vive num tecido de acontecimentos. As Conferências e a
sensibilidade
de nossa
história eclesial apontam para este caminho que não deve ser esquecido neste
novo clima
de subjetivismo
e emocionalismo em que vivemos. É preciso não perder estes elementos
litúrgicoculturais
e eclesiais
para repensar o sentido e ver a possibilidade (as formas) do celebrar para e
por
parte da
pessoa ‘concreta’ com sua história, dentro da História da Salvação que a L.
celebra17.
c) Aparece
também, para nós pastores e liturgistas um empenho ou desafio. Precisamos
constantemente
avaliar e
monitorar o amadurecimento e a recepção das idéias. Até que ponto o Concílio
fez crescer
uma visão de Igreja segundo LG e GS? SC deve ser lida e aplicada à luz das
demais
Constituições
e do Concílio em geral. Então, até que ponto as orientações conciliares foram
assimiladas
pelos
principais agentes de pastoral e como ajudar o povo – começando pelos “intelectuais
orgânicos - “a entenderem as idéias fundamentais do ser Igreja que
celebra e testemunha o Mistério
pascal”?
d) Uma
última breve reflexão. A L. usa em seu estar na História da Salvação uma
linguagem
simbólica,
caracterizada pela gratuidade, pela ‘arte’, como um ‘jogo’, na espontaneidade e
alegria18.
No serviço a
Deus não temos objetivos específicos a alcançar. Só pretendemos ‘estar diante
dEle na
gratuidade
do amor’, com total desinteresse. A insistência na dimensão do ‘compromisso’,
do ‘fazer’,
do ‘transformar’
pode se tornar ambígua e acabar abafando a dimensão própria da oração
litúrgica.
Dessa
História que atualizamos celebrando nós não somos os principais protagonistas,
só fomos, em
Cristo,
escolhidos “para sermos santos e irrepreensíveis diante dele no amor... para
louvor e glória da
sua graça
com a qual ele nos agraciou no Amado” (Ef 1,4-6).
1 Continua: “Em cada Eucaristia os cristãos celebram e assumem o
mistério pascal, participando nEle. Portanto, os fiéis
devem viver
sua fé na centralidade do mistério pascal de Cristo através da Eucaristia, de
maneira que toda a sua vida
seja cada
vez mais eucarística”.
2 Segue-se o método: Ver (Dados gerais sobre a situação), Julgar (Fundamentação
teológica e pastoral), Agir (Recomendações).
3 Em nota se faz referência ao discurso de papa Paulo VI na inauguração da
Conferência.
4 A Eucaristia é definida “celebração central da Igreja” e “alimento
substancial dos discípulos missionários” (Ap 25).
5 Enumeram-se os
novos livros litúrgicos, a difusão da catequese pré-sacramental, os documentos
da sé Apostólica e das
diferentes
Conferências Episcopais etc. (cf. P. 896- 897).
6 Continua: “Prejudicial também tem sido a falta de observância das normas
litúrgicas e de seu espírito pastoral, por
abusos que
causam desorientação e divisão entre os fiéis” (P. 903). P. reconhece as várias
dificuldades e limites na
realização
da reforma litúrgica, por ex. quando escreve: “A Pastoral litúrgica ainda não
tem a prioridade que lhe corresponde”
(P. 901), e “é
necessário promover os agentes da Pastoral litúrgica” (P. 942). Denuncia,
ainda, o aparecer de
uma “mentalidade
neo-ritualista” (P. 916).
7 Eis o texto: “1. Um conhecimento e uma vivência mais profunda da fé
(cf. SC 33); 2. Um sentido da transcendência da
vocação
humana (cf. SC 41); 3. Um fortalecimento do espírito da comunidade (cf. PC 6,
SC 26 e 27); 4. Uma mensagem
cristã de
alegria e esperança (cf. SC 5 e 6); 5. A dimensão missionária da vida eclesial
(SC 2, AG 15); 6. A exigência
postulada
pela fé, de comprometer-se com as realidades humanas (cf. SC 11 e 12, GS 43)”.
8 “A renovação
litúrgica deve ser orientada por critérios pastorais fundados na própria
natureza da L. e de sua função evangelizadora”
(P. 924).
9 Este cuidado retorna, logo em seguida, quando lemos: “Os sinais importantes
em qualquer ação litúrgica, devem ser
empregados
de maneira viva e digna, com o pressuposto duma catequese adequada. As
adaptações previstas na Constituição
SC e nas
normas pastorais posteriores são indispensáveis para se conseguir um rito
acomodado à nossas necessidades,
especialmente
às do povo simples, tendo-se em conta suas legítimas expressões culturais” (P.
926).
Ver P. 928,
941: recomendam que toda celebração deve ter uma projeção evangelizadora.
10 Cf. Deus Charitas est, 1; cf. Ap 12, 243-244.
11 Este termo “cerimônia litúrgica” não é dos mais adequados como sinônimo de
L.!
12 Cita-se o discurso de João Paulo II à UNESCO, 02-06-80.
13 Na Mensagem final, 30 entre as linhas pastorais aponta-se a
necessidade de uma “L. viva”, numa “Igreja em estado
permanente
de missão”: já ao n. 145 encontramos o “compromisso” – diante da realidade do
avanço das “seitas fundamentalistas”
que se “promova
uma liturgia viva, participativa e com repercussão na vida”.
14 Observa Pe. A.
Beckauser: “Os documentos de Medellín e de Puebla preferem usar a palavra
religiosidade popular,
mas de fato
tratam quase exclusivamente da “piedade popular” manifestada nos “exercícios de
piedade” quase que
restritos à
devoção a Nossa Senhora e à freqüência aos santuários”.
15 Entre os primeiros: “senso do sagrado e do transcendente; disponibilidade
para ouvir a Palavra de Deus; marcada
piedade
mariana; capacidade para rezar; sentido de amizade, caridade e união familiar;
capacidade de sofrer e reparar;
resignação
cristã em situações irreparáveis; desprendimento das coisas materiais” (P.
913); aspectos negativos: “falta de
senso de pertença
à Igreja; desvinculação entre fé e vida; o fato de não conduzir à recepção dos
sacramentos; exagerada
valorização
do culto dos santos com detrimento do conhecimento de Jesus Cristo e de seu
mistério etc.” (P. 914).
16 À piedade popular Ap. dedica, sobretudo, os nn. 258-265. Cf. frei
Alberto BECKHÄUSER. Religiosidade/piedade
popular no documento de Aparecida: avaliação crítica, desafios litúrgicos e
pastorais. Comunicação na atual Semana
Teológica
(ver Internet).
17 Neste sentido acolho o convite do prof. Grillo a “recuperar o Concílio sem
traí-lo e discutir sua recepção sem ‘cumprimentos’.
18 Na palestra o prof. Grillo nos convidou a “resistir à lógica objetivista ou
subjetivista da experiência de fé, que os ritos
salvaguardam, numa riqueza
originária e escatológica”.
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