PALESTRA DE DOM ARMANDO NO SEMINÁRIO NACIONAL DE LITURGIA



1
A LITURGIA, MOMENTO HISTÓRICO DA SALVAÇÃO
NAS CONFERÊNCIAS DO CELAM
EM MEDELLIN, PUEBLA, SANTO DOMINGO E APARECIDA
Dom Armando Bucciol

Introdução.
Em sua palestra o prof. Andrea Grillo dizia que para acolher e entender o Concílio é preciso “elaborar
‘linguagens diferentes’ (O’Melley): o Concílio comporta uma conversão de linguagem que é,
talvez, a empreitada mais exigente para esta e as próximas gerações” e apontou “quatro coisas a não
serem esquecidas”, isto é, a) a liturgia é ação ritual, b) é experiência de comunhão, c) é tempo festivo /
doado, d) enfim é fons et culmen.
A partir dessas sugestões, analisei os Documentos das quatro últimas Conferências do Episcopado
latino-americano. O que estes importantes eventos eclesiais disseram no que se refere a
dimensão que estamos considerando, isto é, A liturgia qual momento histórico da salvação?
Falando a Cultores e Professores de Liturgia, dispenso-me de aprofundar conceitos. Minha colocação
pretende captar a ressonância conciliar nos Documentos das Igrejas do Continente, qual
proposta de recepção criativa e inculturada.
Observava ainda o prof. Andrea, que a recuperação do conceito de Liturgia (L.) como “continuidade
com a obra de salvação”, pede que se recupere, mais do que a noção teológica, “as condições
antropo-teológicas da sua verdade”. Neste sentido, as Conferências do Episcopado latino-americano
e caribenho, procuraram usar uma linguagem muito em sintonia com a vida e a história de nossos
povos. Essa dimensão histórica da salvação, que se fundamenta na Páscoa de Cristo, encontra sensibilidade
específica na leitura teológica e pastoral de nossos documentos.
Até que ponto as orientações dadas pelas quatro Conferências foram e estão sendo recebidas,
deixo à avaliação competente e experiente de todos. Com certeza, muito e positivamente se caminhou,
mas, também, longo caminho nos resta a fazer. Ainda mais que é-nos exigido muito cuidado
para não esquecer os passos dados e voltar atrás, ignorando o que nestes últimos decênios foi amadurecido
e conquistado.

1. O que é Liturgia?
O Documento da última Conferência que aconteceu em Aparecida (Ap) (maio de 2007) destaca
a dimensão pascal da L. e aponta o mistério pascal qual elo unificador da L. e da vida eclesial.
Nele a Eucaristia é considerada em sua identidade teológica, litúrgico - celebrativa, espiritual, devocional
e existencial. Escrevem os bispos: “Encontramos Jesus Cristo, de modo admirável, na Sagrada
L. Ao vivê-la, celebrando o mistério pascal, os discípulos de Cristo penetram mais nos mistérios
do Reino e expressam de modo sacramental sua vocação de discípulos missionários” (Ap 250). Logo
em seguida, se lê: “A Eucaristia (é) lugar privilegiado do encontro do discípulo com Jesus Cris2
to... de tal modo que a existência cristã adquira verdadeiramente forma litúrgica”1. Por isso, “a Eucaristia,
fonte inesgotável da vocação cristã é, ao mesmo tempo, fonte inextinguível do impulso
missionário” (Ap 251). A partir da Eucaristia – Liturgia, decorrem afirmações de forte espessura
teológica que definem exigências e estilo do testemunho e do anúncio missionários.
Este pensamento é expressão teologicamente madura de uma longa caminhada de reflexão e de
empenho cristão. Por isso, vale a pena relembrar o que dizia sobre L. o I dos 4 importantes documentos
que consideramos: as Conclusões de Medellín (1968). Um dos 16 temas tratados, o 9, é
Liturgia2.
A ideia de L. é expressa nestes termos: “A presença da salvação, enquanto a humanidade peregrina
até sua plena realização na parusia do Senhor, culmina na celebração da L. eclesial (cf. SC 8 e
10)”. Respira-se ainda muito viva a influência conciliar. As referências a SC e outros textos conciliares
são constantes, sobretudo LG. Por ex., outra frase síntese: “Como não vivemos ainda a plenitude
do Reino (cf. LG 3 e 5), toda celebração litúrgica está essencialmente marcada pela tensão entre
o que já é uma realidade e o que ainda não se verifica plenamente (cf. LG 48 e SC 6)”; “A L., momento
em que a Igreja é mais perfeitamente ela própria, realiza, indissoluvelmente unidas, a comunhão
com Deus e entre os homens (cf. LG 1 e SC 47), e de tal modo, que aquela é a razão desta”3.
O documento de Puebla (P.) – 1979 - trata o assunto “Liturgia” num longo parágrafo (895-963)
que começa assim: “A oração particular e a piedade popular, presentes na alma do nosso povo,
constituem valores de evangelização; a L. é o momento privilegiado de Comunhão e Participação
para uma Evangelização que conduz à libertação cristã integral, autêntica” (P. 895).
Em Santo Domingo (SD) – 1992 – se lê: “O culto cristão deve expressar a dupla vertente da obediência
ao Pai (glorificação) e da caridade com os irmãos (redenção), pois a glória de Deus é que o
homem viva. Com o qual longe de alienar aos homens, os liberta e os faz irmãos” (SD 34). A preocupação
‘atualizante’ retorna com insistência. Por ex. quando se escreve: “O serviço litúrgico tem por si
mesmo, um valor evangelizador” e “a Nova Evangelização deve situar-se em lugar de destaque. Na L.
faz-se presente hoje Cristo Salvador. A L. é anúncio e realização (cf. SC 6) dos feitos salvíficos que
nos chegam a tocar sacramentalmente; por isso, convoca, celebra e envia”; “a celebração não pode ser
algo separado ou paralelo à vida” (SD 35).
De Aparecida, destaco ainda, a centralidade dada à ação e à experiência de Cristo que “introduz o
cristão numa profunda e feliz celebração dos sacramentos, com toda a riqueza de seus sinais. Desse modo,
a vida vem se transformando progressivamente pelos santos mistérios que se celebram, capacitando
o cristão a transformar o mundo” (Ap 290); ainda: “O discípulo, em cada celebração eucarística4, renova
sua aliança de amor” (Ap 350).
Concluo a leitura dos Documentos a respeito deste primeiro aspecto, retomando as palavras do
prof. Grillo: “A L. é experiência de comunhão” – dizia - e, por isso, “mostra os limites de toda captura
privatizante e publicitária”.
A análise dos Documentos evidencia uma sensibilidade marcadamente atenta às dimensões comunitárias,
sociais e até políticas da fé e de sua expressão fundamental, a L. Esta, numa análise unitária e
abrangente, é chamada a caminhar em sintonia e harmonia com o testemunho de uma vida impregnada
de solidariedade e amor, em busca da libertação plena de cada pessoa e dos povos.

2. Qual a situação da L. em nosso Continente?
Medellín abre com palavras quase desanimadoras. Observa que se em algumas regiões houve
crescentes esforços para a renovação litúrgica, em outras ainda está fraca e em geral é “insuficiente”.
“Falta uma mentalidade sobre o conteúdo da reforma”; “tem-se a impressão de que o bispo nem
sempre exerce de forma eficaz seu papel litúrgico”; “a L. não está integrada organicamente na educação
religiosa”. É interessante retomar este “ponto de partida” quando avaliamos hoje nossa realidade.
Em Puebla os bispos já reconhecem que, uns 15 anos após o início da reforma litúrgica “a renovação
está dando resultados positivos”; isso favorecido por vários elementos5 e facilitada “pelo
idioma comum, a riqueza cultural e a piedade popular” (P. 898). Logo, recordando SC 37-40, aponta-
se “a necessidade de se adaptar a L. às diversas culturas e à situação de nosso povo jovem, pobre
e humilde” (P. 899). Porém, acrescentam-se mais duas observações críticas: “A participação na L.
não repercute de forma adequada no compromisso social dos cristãos. A instrumentalização que,
por vezes, se faz da mesma, lhe desfigura o valor evangelizador” (P. 902)6.
De Puebla a Santo Domingo se passaram 12 anos. Como procedeu a reforma litúrgica? Foram
dados passos para frente? SD assim avalia: “Muito resta a ser feito tanto para assimilar em nossas
celebrações a renovação litúrgica desencadeada pelo Concílio Vaticano II, como para ajudar os fiéis
a fazer da celebração eucarística a expressão de seu compromisso pessoal e comunitário com o Senhor.
Ainda não se alcançou plena consciência do que significa a centralidade da L. como fonte e
cume da vida eclesial” (SD 43).
No documento de Aparecida, retorna uma dolorida constatação já presente nas outras Conferências,
isto é, a existência pelo Continente afora de “milhares de comunidades com seus milhões
de membros, que não têm a oportunidade de participar da Eucaristia dominical” (Ap 253), “privadas
... por longos períodos de tempo” (Ap 100 e). Mas uma carência maior, que se reflete também na
escassa consciência e participação litúrgica, consiste na falta de formação de boa parte dos nossos
católicos. De fato, “são muitos os cristãos que não participam na Eucaristia dominical nem recebem
com regularidade os sacramentos”... “Temos alta porcentagem de católicos sem a consciência de
sua missão de ser sal e fermento no mundo, com identidade fraca e vulnerável” (Ap 286). Trata-se
de uma realidade a todos conhecida. A escassa compreensão e participação na L., então, não se cura
sem esta formação que deve ser realizada no estilo da Iniciação, compreendendo a mistagogia (cf.
Ap 290).

3. Peculiaridades e acentuações na vivência da L.
Medellín destaca o valor da celebração litúrgica; de fato, ela apresenta, “mediante o conjunto
de sinais com que expressa a fé”, diferentes e importantes valores7. Acentua-se a necessidade que “a
celebração litúrgica comporta e coroa um compromisso com a realidade humana (cf. GS, 43), com o
desenvolvimento e com a promoção, precisamente porque toda a criação está envolvida pelo desígnio
salvador que abrange a totalidade do homem (cf. GS 41)” (II a).
Em Puebla a consciência do sentido e das competências específicas da L. adquire uma definição
mais clara: “A L. é... um encontro com Deus e os irmãos; banquete e sacrifício realizado na
Eucaristia; festa de comunhão eclesial, na qual o Senhor Jesus, por seu mistério pascal, assume e
liberta o Povo de Deus e, por ele, a toda a humanidade, cuja história é convertida em história salvífica,
para reconciliar os homens entre si e com Deus. A L. é também força em nosso peregrinar,
para que se leve a bom termo, mediante o compromisso transformador da vida, a realização plena
do Reino, segundo o plano de Deus” (P. 918).
Pode-se observar o destaque próprio da teologia e vivência pastoral da época eclesial, com o
constante incentivo para unir fé e vida, liturgia e testemunho, história do povo e história salvífica,
projeto de Deus que se cumpre dentro do compromisso transformador, também sem nele se esgotar.
Retoma-se SC, quando se escreve: “Pelos sacramentos, Cristo continua, mediante a ação da Igreja,
a encontra-se com os homens e salvá-los” (P. 923); “a reforma e renovação litúrgica fomentem a
participação que conduz à comunhão” (...). “Por isso, as considerações pastorais salva sempre a observância
das normas litúrgicas, devem superar o mero rubricismo” (P. 925)8. Existe a busca constante
de fidelidade à identidade da L., e o firme desejo que tudo sirva para fazer crescer a vivência
eclesial do Povo de Deus9.
O documento de Aparecida dedica muitas páginas à L. e à análise dos Sacramentos todos, sobretudo
ao Batismo e à Eucaristia. Falando da vida paroquial se diz que as paróquias devem ser sempre
mais “comunidades eucarísticas que vivem sacramentalmente o encontro com o Cristo salvador” (Ap
175a) e que todo compromisso de solidariedade humana e social encontra na Eucaristia sua razão de
ser como “exigência de uma evangelização integral” (cf. Ap 176). Acentua-se, enfim, a urgência de
“promover a ‘pastoral do domingo’ e dar a ela ‘prioridade nos programas pastorais’ (cf. SD 4)” por
que “sem uma participação ativa na celebração eucarística dominical e nas festas de preceito, não existirá
um discípulo missionário maduro” (Ap 252).
Em síntese, os votos e desejos das Conferências são claros; suficientemente clara, também, é a
consciência do que deve preceder, acompanhar e seguir o momento litúrgico e das dimensões do trabalho
pastoral. Nesta História da Salvação que recebemos e da qual, por graça, somos protagonistas,
temos grandes responsabilidades. Não adianta ficar nos detalhes se não colhermos o objetivo geral e o
essencial. Nossas últimas Diretrizes (D. 37) lembravam uma afirmação de papa Bento XVI: “Não se
começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas pelo encontro com um acontecimento,
com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida” e, “por sua vez, este encontro é mediado
pela ação da Igreja”10. Neste sentido a L. tem um papel fundamental, indispensável!

4. A inculturação: desafio e compromisso
À dimensão inculturação aparece desde o documento de Medellín como exigência dentro da
L. e retorna constantemente, encontrando em Santo Domingo destacada expressão: “Para que a L.
possa realizar, em plenitude, seus objetivos”, necessário se faz “adaptar-se ao gênio das diversas
culturas e encarnar-se nele” (II,b) (cf. SC 37, AG 22, GS 44); e se recomenda de evitar ”erigir, a
priori, a uniformidade como princípio” (cf. SC 37, LG 13).
A necessidade da inculturação reaparece em Puebla como dimensão eclesial e com realce especial
da L. As conclusões recomendam: “Na L., celebrar a fé com expressões culturais, obedecendo
a uma sadia criatividade. Promover adaptações adequadas particularmente aos grupos étnicos e
ao povo simples (grupos populares)” (P. 940).
O referencial destas considerações permanece a História da Salvação. Não é novidade o anseio
constante que nossa Igreja, Pastores e agentes de pastoral, teólogos e povo de Deus em geral, têm para
com a praxe, a vida concreta, a realidade humana, poderíamos dizer com a encarnação da Palavra.
Nesta perspectiva as Conferências trabalharam, com um cunho profundamente pastoral. Neste sentido,
eis uma urgência: “Nenhuma atividade pastoral pode-se realizar sem referência à L.” (P. 927);
“qualquer celebração deve ter, por sua vez, uma projeção evangelizadora e catequética, adaptada às
diversas assembléias de fiéis” (P. 928); enfim, a L. deve ser celebração da fé qual “encontro com
Deus e com os irmãos, como festa de comunhão eclesial, como fortalecimento em nosso peregrinar e
como compromisso de nossa vida cristã” (P. 939).
Também SD deu o deu especial atenção à inculturaçã. Observa-se (SD 248) que a inculturação
foi escassa ao longo da história do Continente e, com o papa, se pede perdão “pelos fatos marcados
pelo pecado, pela injustiça e pela violência”. Reclama-se que “ainda não se dá atenção ao processo
de uma sã inculturação da L.” e, de consequência “as celebrações, para muitos, (são) algo ritualista
e privado a ponto de não se fazerem consciência da presença transformadora de Cristo e de seu espírito
nem de traduzirem-na em um compromisso solidário para a transformação do mundo” (SD
43).
Santo Domingo reconhece o “valor pedagógico” de “toda a cerimônia litúrgica de cada sacramento”
11, mas “é especialmente pela L. que o Evangelho penetra no coração mesmo das culturas” e
pede para que “as formas da celebração litúrgica devem ser aptas para expressar o mistério que se
celebra e, por sua vez, ser claras e inteligíveis para os homens e mulheres”12 (SD 35).
Com o compromisso de “desenvolver uma evangelização inculturada” se assume, também, aquele
de “promover uma inculturação da L., acolhendo com apreço símbolos e expressões religiosas
compatíveis com o claro sentido da fé, mantendo o valor dos símbolos universais e em harmonia
com a disciplina geral da Igreja”, tudo isso, sobretudo, “para com nossos irmãos indígenas”.
Desde as primeiras linhas Aparecida acena à inculturação como algo que foi negado no início
da história de nossa evangelização, mas Guadalupe foi “pedagogia e sinal de inculturação da fé”
(Ap 4). Hoje “esforços têm sido realizados para inculturar a L. nos povos indígenas e afroamericanos”
(Ap 99b), e dessa maneira “a Igreja se enriquece com novas expressões e valores, manifestando
e celebrando cada vez melhor o mistério de Cristo, conseguindo unir mais a fé com a
vida e assim contribuindo para uma catolicidade mais plena, não só geográfica, mas também cultural”
(Ap 479).
Podemos relevar que as Conferências captam a existência do(s) problema(s), mas a solução
prática não é fácil de ser encontrada13.

5. A Piedade popular: entre Liturgia e vida, passado e presente da Evangelização
A Piedade popular 14 retorna em todos os Documentos. Chamada com nomes diferentes - devoções
populares em Medellín – é dimensão importante na vida cultural, eclesial e espiritual de
nossos povos. “Sendo tão arraigadas em nosso povo certas devoções populares, recomenda-se buscar
formas mais adequadas, que lhes dêem conteúdo litúrgico, de modo que se tornem veículos da
fé e de compromisso com Deus e com os homens” (cf. SC 13) (3d, 4).
Puebla reconhece que é algo “presente na alma dos nossos povos” (P. 895) e “nós, bispos, não
podemos deixar passar despercebida” e “precisa ser estudada com critérios teológicos e pastorais, para
se descobrir seu potencial evangelizador” (P. 910). Reconhece-se que “a América Latina está insuficientemente
evangelizada. A maioria do povo exprime sua fé prevalentemente na piedade popular“ (P.
911). Dela P. analisa aspectos positivos (P. 913) e negativos (P. 914)15 e reconhece que ”encerra valores
evangelizadores” se for iluminada por uma “constante purificação e clarificação” (P. 937). Por
isso, eis a necessidade de “orientar os sacramentos ao reconhecimento dos benefícios de Deus e à tomada
de consciência do compromisso que o cristão tem no mundo” (P. 962). Convida, enfim, a “apresentar
a devoção a Maria e aos Santos como realização neles da Páscoa de Cristo (cf. SC 104) e recordar
que deve conduzir à vivência da Palavra e do testemunho de vida” (P. 963).
Santo Domingo retoma a exigência de valorizar a piedade popular - que chama também de religiosidade
popular – insistindo na urgência de purificá-la e abri-la “a novas situações”, se não “o secularismo
impor-se-á mais fortemente em nossos povos latino-americano e a inculturação do Evangelho
será mais difícil” (SD 53).
Em Aparecida se diz que “a piedade popular é uma maneira legítima de viver a fé, um modo
de se sentir parte da Igreja e uma forma de ser missionários, onde se recolhem as mais profundas
vibrações da América Latina” e “no ambiente de secularização que vivem nossos povos, continua
sendo uma poderosa confissão do Deus vivo que atua na história e um canal de transmissão da fé”
(Ap 264). Acentua-se o valor da devoção a Maria, sobretudo, celebrada nos grandes santuários de
Guadalupe e Aparecida: “Maria, reunindo os filhos, integra nossos povos ao redor de Jesus Cristo”
(Ap 265)16.

6. Anotações finais
Finalizando, com expressão resumida, podemos dizer que as “nossas” Conferências manifestaram
constantemente a busca de tornar a história concreta de nossos povos História da Salvação. A
L. coloca em nossas mãos esta História para que não fique no passado; ela nós envolve hoje, pela
presença do Espírito, a vivermos em plenitude a história atual, repleta de graves injustiças e contradições
sócio-políticas e econômicas, qual história da presença salvadora de Cristo. No mistério pascal
tudo é iluminado e transformado.
Liturgistas, Pastores e Pastoras que somos, perguntamos e nos questionamos como isso possa
acontecer de maneira sempre mais bela e compreensiva, de que modo os ‘votos’ e sonhos do Concílio,
destacados pelas Conferências, podem ser encarnados em nossas Igrejas locais.
a) Antes de tudo, gostaria dizer algo a partir da minha experiência de Presidente em tantas e as
mais diversificadas celebrações. Na grande maioria das vezes, nas solenidades da Catedral como
nas Comunidades menores e mais pobres, vivo meu ministério com profunda emoção espiritual e
intensa participação. Penso, às vezes, se os renomados liturgistas que escrevem belas teorias estivessem
presentes, no meio deste povo, simples e humilde, acredito iriam concluir que Deus continua
revelando-se aos pequenos e pobres e a L., quando impregnada de fé simples, ingênua alguém
diria, continua proporcionando uma verdadeira experiência do Cristo vivo. Talvez as rubricas litúrgicas
nem sempre sejam observadas perfeitamente – não por desprezo ou desleixo, só por não conhecimento!
Mas, na maioria das vezes, tudo acontece numa substancial fidelidade às normas litúrgicas,
com espontaneidade e em clima de festa; a atenção é interrompida só pelo choro de uma criança
(isso também entra na História da Salvação), ou de um bêbado que celebra o amor a Cristo
com suas extravagâncias e declarações fora de lugar, ou as briguinhas dos meninos... Sim, o canto,
de boca cheia, não está muito afinado, nem os instrumentos que acompanham... Mas, trata-se de
participação espontânea e alegre, entre risos e choros, palmas e sintonia. Quando se sai destas celebrações,
o coração está repleto de Deus, o Espírito do Ressuscitado se revela vivo em sua Igreja, a
vida adquire novo vigor, pode-se recomeçar a labuta cotidiana na certeza de uma presença que acompanha
e sustenta. Eis a L. fons et culmen da vida de fé e da vida em sua plena dimensão antropológica:
Deus não permanece uma teoria mas se torna experiência humana plena.
b) Na análise dos Documentos em questão, apareceu algo que todos sabemos, mas nem sempre
recebe suficiente destaque. O “ato litúrgico” ou “celebrativo” não pode ser isolado do resto da vida
eclesial e cultural. O que celebramos provem e conduz à existência concreta. Quem celebra é uma
pessoa com sua história, que vive num tecido de acontecimentos. As Conferências e a sensibilidade
de nossa história eclesial apontam para este caminho que não deve ser esquecido neste novo clima
de subjetivismo e emocionalismo em que vivemos. É preciso não perder estes elementos litúrgicoculturais
e eclesiais para repensar o sentido e ver a possibilidade (as formas) do celebrar para e por
parte da pessoa ‘concreta’ com sua história, dentro da História da Salvação que a L. celebra17.
c) Aparece também, para nós pastores e liturgistas um empenho ou desafio. Precisamos constantemente
avaliar e monitorar o amadurecimento e a recepção das idéias. Até que ponto o Concílio
fez crescer uma visão de Igreja segundo LG e GS? SC deve ser lida e aplicada à luz das demais
Constituições e do Concílio em geral. Então, até que ponto as orientações conciliares foram assimiladas
pelos principais agentes de pastoral e como ajudar o povo – começando pelos “intelectuais
orgânicos - “a entenderem as idéias fundamentais do ser Igreja que celebra e testemunha o Mistério
pascal”?
d) Uma última breve reflexão. A L. usa em seu estar na História da Salvação uma linguagem
simbólica, caracterizada pela gratuidade, pela ‘arte’, como um ‘jogo’, na espontaneidade e alegria18.
No serviço a Deus não temos objetivos específicos a alcançar. Só pretendemos ‘estar diante dEle na
gratuidade do amor’, com total desinteresse. A insistência na dimensão do ‘compromisso’, do ‘fazer’,
do ‘transformar’ pode se tornar ambígua e acabar abafando a dimensão própria da oração litúrgica.
Dessa História que atualizamos celebrando nós não somos os principais protagonistas, só fomos, em
Cristo, escolhidos “para sermos santos e irrepreensíveis diante dele no amor... para louvor e glória da
sua graça com a qual ele nos agraciou no Amado” (Ef 1,4-6).

1 Continua: Em cada Eucaristia os cristãos celebram e assumem o mistério pascal, participando nEle. Portanto, os fiéis
devem viver sua fé na centralidade do mistério pascal de Cristo através da Eucaristia, de maneira que toda a sua vida
seja cada vez mais eucarística”.
2 Segue-se o método: Ver (Dados gerais sobre a situação), Julgar (Fundamentação teológica e pastoral), Agir (Recomendações).
3 Em nota se faz referência ao discurso de papa Paulo VI na inauguração da Conferência.
4 A Eucaristia é definida “celebração central da Igreja” e “alimento substancial dos discípulos missionários” (Ap 25).
5 Enumeram-se os novos livros litúrgicos, a difusão da catequese pré-sacramental, os documentos da sé Apostólica e das
diferentes Conferências Episcopais etc. (cf. P. 896- 897).
6 Continua: “Prejudicial também tem sido a falta de observância das normas litúrgicas e de seu espírito pastoral, por
abusos que causam desorientação e divisão entre os fiéis” (P. 903). P. reconhece as várias dificuldades e limites na
realização da reforma litúrgica, por ex. quando escreve: “A Pastoral litúrgica ainda não tem a prioridade que lhe corresponde”
(P. 901), e “é necessário promover os agentes da Pastoral litúrgica” (P. 942). Denuncia, ainda, o aparecer de
uma “mentalidade neo-ritualista” (P. 916).
7 Eis o texto: 1. Um conhecimento e uma vivência mais profunda da fé (cf. SC 33); 2. Um sentido da transcendência da
vocação humana (cf. SC 41); 3. Um fortalecimento do espírito da comunidade (cf. PC 6, SC 26 e 27); 4. Uma mensagem
cristã de alegria e esperança (cf. SC 5 e 6); 5. A dimensão missionária da vida eclesial (SC 2, AG 15); 6. A exigência
postulada pela fé, de comprometer-se com as realidades humanas (cf. SC 11 e 12, GS 43)”.
8 “A renovação litúrgica deve ser orientada por critérios pastorais fundados na própria natureza da L. e de sua função evangelizadora”
(P. 924).
9 Este cuidado retorna, logo em seguida, quando lemos: “Os sinais importantes em qualquer ação litúrgica, devem ser
empregados de maneira viva e digna, com o pressuposto duma catequese adequada. As adaptações previstas na Constituição
SC e nas normas pastorais posteriores são indispensáveis para se conseguir um rito acomodado à nossas necessidades,
especialmente às do povo simples, tendo-se em conta suas legítimas expressões culturais” (P. 926).
Ver P. 928, 941: recomendam que toda celebração deve ter uma projeção evangelizadora.
10 Cf. Deus Charitas est, 1; cf. Ap 12, 243-244.
11 Este termo “cerimônia litúrgica” não é dos mais adequados como sinônimo de L.!
12 Cita-se o discurso de João Paulo II à UNESCO, 02-06-80.
13 Na Mensagem final, 30 entre as linhas pastorais aponta-se a necessidade de uma “L. viva”, numa “Igreja em estado
permanente de missão”: já ao n. 145 encontramos o “compromisso” – diante da realidade do avanço das “seitas fundamentalistas”
que se “promova uma liturgia viva, participativa e com repercussão na vida”.
14 Observa Pe. A. Beckauser: “Os documentos de Medellín e de Puebla preferem usar a palavra religiosidade popular,
mas de fato tratam quase exclusivamente da “piedade popular” manifestada nos “exercícios de piedade” quase que
restritos à devoção a Nossa Senhora e à freqüência aos santuários”.
15 Entre os primeiros: “senso do sagrado e do transcendente; disponibilidade para ouvir a Palavra de Deus; marcada
piedade mariana; capacidade para rezar; sentido de amizade, caridade e união familiar; capacidade de sofrer e reparar;
resignação cristã em situações irreparáveis; desprendimento das coisas materiais” (P. 913); aspectos negativos: “falta de
senso de pertença à Igreja; desvinculação entre fé e vida; o fato de não conduzir à recepção dos sacramentos; exagerada
valorização do culto dos santos com detrimento do conhecimento de Jesus Cristo e de seu mistério etc.” (P. 914).
16 À piedade popular Ap. dedica, sobretudo, os nn. 258-265. Cf. frei Alberto BECKHÄUSER. Religiosidade/piedade
popular no documento de Aparecida: avaliação crítica, desafios litúrgicos e pastorais. Comunicação na atual Semana
Teológica (ver Internet).
17 Neste sentido acolho o convite do prof. Grillo a “recuperar o Concílio sem traí-lo e discutir sua recepção sem ‘cumprimentos’.
18 Na palestra o prof. Grillo nos convidou a “resistir à lógica objetivista ou subjetivista da experiência de fé, que os ritos
salvaguardam, numa riqueza originária e escatológica”.

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