JÁ NÃO ESCRAVOS, MAS IRMÃOS
1. No início dum novo ano, que acolhemos como uma
graça e um dom de Deus para a humanidade, desejo dirigir, a cada homem e
mulher, bem como a todos os povos e nações do mundo, aos chefes de Estado e de
Governo e aos responsáveis das várias religiões, os meus ardentes votos de paz,
que acompanho com a minha oração a fim de que cessem as guerras, os conflitos e
os inúmeros sofrimentos provocados quer pela mão do homem quer por velhas e
novas epidemias e pelos efeitos devastadores das calamidades naturais. Rezo de
modo particular para que, respondendo à nossa vocação comum de colaborar com
Deus e com todas as pessoas de boa vontade para a promoção da concórdia e da
paz no mundo, saibamos resistir à tentação de nos comportarmos de forma não
digna da nossa humanidade.
Já, na minha mensagem para o 1º de Janeiro passado, fazia notar que «o anseio duma
vida plena (…) contém uma aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à
comunhão com os outros, em quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas
irmãos que devemos acolher e abraçar».[1] Sendo
o homem um ser relacional, destinado a realizar-se no contexto de relações
interpessoais inspiradas pela justiça e a caridade, é fundamental para o seu
desenvolvimento que sejam reconhecidas e respeitadas a sua dignidade, liberdade
e autonomia. Infelizmente, o flagelo generalizado da exploração do homem pelo
homem fere gravemente a vida de comunhão e a vocação a tecer relações
interpessoais marcadas pelo respeito, a justiça e a caridade. Tal fenômeno
abominável, que leva a espezinhar os direitos fundamentais do outro e a
aniquilar a sua liberdade e dignidade, assume múltiplas formas sobre as quais
desejo deter-me, brevemente, para que, à luz da Palavra de Deus, possamos
considerar todos os homens, «já não escravos, mas irmãos».
À escuta do projeto de Deus para a humanidade
2. O tema, que escolhi para esta mensagem,
inspira-se na Carta de São Paulo a Filémon; nela, o Apóstolo pede ao seu
colaborador para acolher Onésimo, que antes era escravo do próprio Filémon, mas
agora tornou-se cristão, merecendo por isso mesmo, segundo Paulo, ser
considerado um irmão. Escreve o Apóstolo dos gentios: «Ele foi
afastado por breve tempo, a fim de que o recebas para sempre, não já como
escravo, mas muito mais do que um escravo, como irmão querido» (Flm 15-16).
Tornando-se cristão, Onésimo passou a ser irmão de Filémon. Deste modo, a
conversão a Cristo, o início duma vida de discipulado em Cristo constitui
um novo nascimento (cf. 2 Cor 5, 17; 1
Pd 1, 3), que regenera a fraternidade como vínculo
fundante da vida familiar e alicerce da vida social.
Lemos, no livro do Gênesis (cf. 1, 27-28), que Deus
criou o ser humano como homem e mulher e abençoou-os para que
crescessem e se multiplicassem: a Adão e Eva, fê-los pais, que, no cumprimento
da bênção de Deus para ser fecundos e multiplicar-se, geraram a primeira fraternidade:
a de Caim e Abel. Saídos do mesmo ventre, Caim e Abel são irmãos e, por isso,
têm a mesma origem, natureza e dignidade de seus pais, criados à imagem e
semelhança de Deus.
Mas, apesar de os irmãos estarem ligados por
nascimento e possuírem a mesma natureza e a mesma dignidade, a fraternidade exprime
também a multiplicidade e a diferença que existe entre eles. Por conseguinte,
como irmãos e irmãs, todas as pessoas estão, por natureza, relacionadas
umas com as outras, cada qual com a própria especificidade e todas partilhando
a mesma origem, natureza e dignidade. Em virtude disso, a fraternidade constitui
a rede de relações fundamentais para a construção da família humana criada por
Deus.
Infelizmente, entre a primeira criação narrada no
livro do Gênesis e o novo nascimento em Cristo – que torna, os
crentes, irmãos e irmãs do «primogênito de muitos irmãos» (Rm 8,
29) –, existe a realidade negativa do pecado, que interrompe tantas vezes a
nossa fraternidade de criaturas e deforma continuamente a beleza e nobreza
de sermos irmãos e irmãs da mesma família humana. Caim não só
não suporta o seu irmão Abel, mas mata-o por inveja, cometendo o primeiro
fratricídio. «O assassinato de Abel por Caim atesta, tragicamente, a rejeição
radical da vocação a ser irmãos. A sua história (cf. Gn 4,
1-16) põe em evidência o difícil dever, a que todos os homens são chamados, de
viver juntos, cuidando uns dos outros». [2]
Também na história da família de Noé e seus filhos (cf. Gn 9,
18-27), é a falta de piedade de Com para com seu pai, Noé, que impele este a
amaldiçoar o filho irreverente e a abençoar os outros que o tinham honrado,
dando assim lugar a uma desigualdade entre irmãos nascidos do mesmo ventre.
Na narração das origens da família humana, o pecado
de afastamento de Deus, da figura do pai e do irmão torna-se uma expressão da
recusa da comunhão e traduz-se na cultura da servidão (cf. Gen 9,
25-27), com as consequências daí resultantes que se prolongam de geração em geração:
rejeição do outro, maus-tratos às pessoas, violação da dignidade e dos direitos
fundamentais, institucionalização de desigualdades. Daqui se vê a necessidade
duma conversão contínua à Aliança levada à perfeição pela oblação de Cristo na
cruz, confiantes de que, «onde abundou o pecado, superabundou a graça (…) por
Jesus Cristo» (Rm 5, 20.21). Ele, o Filho amado (cf. Mt 3,
17), veio para revelar o amor do Pai pela humanidade. Todo aquele que escuta o
Evangelho e acolhe o seu apelo à conversão, torna-se, para Jesus, «irmão,
irmã e mãe» (Mt 12, 50) e, consequentemente, filho aditivo de
seu Pai (cf. Ef 1, 5).
No entanto, os seres humanos não se tornam
cristãos, filhos do Pai e irmãos em Cristo por imposição divina, isto é, sem o
exercício da liberdade pessoal, sem se converterem livremente a
Cristo. Ser filho de Deus requer que primeiro se abrace o imperativo da conversão:
«Convertei-vos – dizia Pedro no dia de Pentecostes – e peça cada um o batismo
em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados; recebereis, então, o
dom do Espírito Santo» (At 2, 38). Todos aqueles que responderam
com a fé e a vida àquela pregação de Pedro, entraram na fraternidade da
primeira comunidade cristã (cf. 1 Ped2, 17; At 1,
15.16; 6, 3; 15, 23): judeus e gregos, escravos e homens livres (cf. 1
Cor 12, 13; Gal 3, 28), cuja diversidade de origem e
estado social não diminui a dignidade de cada um, nem exclui ninguém do povo de
Deus. Por isso, a comunidade cristã é o lugar da comunhão vivida no amor entre
os irmãos (cf. Rm 12, 10; 1 Ts 4, 9; Hb 13,
1; 1 Pd 1, 22; 2 Pd 1, 7).
Tudo isto prova como a Boa Nova de Jesus Cristo –
por meio de Quem Deus «renova todas as coisas» (Ap 21, 5)^[3] – é capaz de redimir também as relações entre os homens, incluindo
a relação entre um escravo e o seu senhor, pondo em evidência aquilo que ambos
têm em comum: a filiação aditiva e o vínculo de fraternidade em Cristo. O
próprio Jesus disse aos seus discípulos: «Já não vos chamo servos, visto que um
servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos,
porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai» (Jo 15, 15).
As múltiplas faces da escravatura, ontem e hoje
3. Desde tempos imemoriais, as diferentes
sociedades humanas conhecem o fenômeno da sujeição do homem pelo homem. Houve
períodos na história da humanidade em que a instituição da escravatura era
geralmente admitida e regulamentada pelo direito. Este estabelecia quem nascia
livre e quem, pelo contrário, nascia escravo, bem como as condições em que a
pessoa, nascida livre, podia perder a sua liberdade ou recuperá-la. Por outras
palavras, o próprio direito admitia que algumas pessoas podiam ou deviam ser
consideradas propriedade de outra pessoa, a qual podia dispor livremente delas;
o escravo podia ser vendido e comprado, cedido e adquirido como se fosse uma
mercadoria qualquer.
Hoje, na sequência duma evolução positiva da
consciência da humanidade, a escravatura – delito de lesa humanidade[4] –
foi formalmente abolida no mundo. O direito de cada pessoa não ser mantida em
estado de escravidão ou servidão foi reconhecido, no direito internacional,
como norma inderrogável.
Mas, apesar de a comunidade internacional ter adotado
numerosos acordos para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter
lançado diversas estratégias para combater este fenômeno, ainda hoje milhões de
pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da
liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura.
Penso em tantos trabalhadores e
trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a
nível formal e informal, desde o trabalho doméstico ao trabalho agrícola, da
indústria manufatureira à mineração, tanto nos países onde a legislação do
trabalho não está conforme às normas e padrões mínimos internacionais, como –
ainda que ilegalmente – naqueles cuja legislação protege o trabalhador.
Penso também nas condições de vida de muitos
migrantes que, ao longo do seu trajecto dramático, padecem a fome, são
privados da liberdade, despojados dos seus bens ou abusados física e sexualmente.
Penso em tantos deles que, chegados ao destino depois duma viagem duríssima e
dominada pelo medo e a insegurança, ficam detidos em condições às vezes desumanas.
Penso em tantos deles que diversas circunstâncias sociais, políticas e econômicas
impelem a passar à clandestinidade, e naqueles que, para permanecer na
legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições indignas, especialmente
quando as legislações nacionais criam ou permitem uma dependência estrutural do
trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho como, por exemplo,
condicionando a legalidade da estadia ao contrato de trabalho... Sim! Penso no
«trabalho escravo».
Penso nas pessoas obrigadas a
prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, e nas escravas
e escravos sexuais; nas mulheres forçadas a casar-se, quer as que são
vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por
morte do marido, sem que tenham o direito de dar ou não o próprio
consentimento.
Não posso deixar de pensar a quantos, menores
e adultos, são objeto de tráfico e comercialização para remoção de
órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir
de pedintes, para atividades ilegais como a produção ou venda de
drogas, ou para formas disfarçadas de adoção internacional.
Penso, enfim, em todos aqueles que são raptados e
mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus
objetivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres,
como escravas sexuais. Muitos deles desaparecem, alguns são vendidos várias
vezes, torturados, mutilados ou mortos.
Algumas causas profundas da escravatura
4. Hoje como ontem, na raiz da escravatura, está
uma concepção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um
objeto. Quando o pecado corrompe o coração do homem e o afasta do seu Criador e
dos seus semelhantes, estes deixam de ser sentidos como seres de igual
dignidade, como irmãos e irmãs em humanidade, passando a ser vistos como objetos.
Com a força, o engano, a coação física ou psicológica, a pessoa humana – criada
à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada,
reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim.
Juntamente com esta causa ontológica – a rejeição
da humanidade no outro –, há outras causas que concorrem para se explicar as
formas atuais de escravatura. Entre elas, penso em primeiro lugar na pobreza,
no subdesenvolvimento e na exclusão, especialmente quando os três se aliam com
a falta de acesso à educação ou com uma realidade
caracterizada por escassas, se não mesmo inexistentes, oportunidades de
emprego. Não raro, as vítimas de tráfico e servidão são pessoas que
procuravam uma forma de sair da condição de pobreza extrema e, dando crédito a
falsas promessas de trabalho, caíram nas mãos das redes criminosas que gerem o
tráfico de seres humanos. Estas redes utilizam habilmente as tecnologias
informáticas modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do
mundo.
Entre as causas da escravatura, deve ser incluída
também a corrupção daqueles que, para enriquecer, estão
dispostos a tudo. Na realidade, a servidão e o tráfico das pessoas humanas
requerem uma cumplicidade que muitas vezes passa através da corrupção dos
intermediários, de alguns membros das forças da polícia, de outros atores do Estado
ou de variadas instituições, civis e militares. «Isto acontece quando, no
centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro, e não o homem, a pessoa
humana. Sim, no centro de cada sistema social ou econômico, deve estar a
pessoa, imagem de Deus, criada para que fosse o dominador do universo. Quando a
pessoa é deslocada e chega o deus dinheiro, dá-se esta inversão de valores».[5]
Outras causas da escravidão são os conflitos
armados, as violências, a criminalidade e
o terrorismo. Há inúmeras pessoas raptadas para ser vendidas,
recrutadas como combatentes ou exploradas sexualmente, enquanto outras se vêem
obrigadas a emigrar, deixando tudo o que possuem: terra, casa, propriedades e
mesmo os familiares. Estas últimas, impelidas a procurar uma alternativa a tão
terríveis condições, mesmo à custa da própria dignidade e sobrevivência,
arriscam-se assim a entrar naquele círculo vicioso que as torna presa da
miséria, da corrupção e das suas consequências perniciosas.
Um compromisso comum para vencer a escravatura
5. Quando se observa o fenômeno do comércio de
pessoas, do tráfico ilegal de migrantes e de outras faces conhecidas e
desconhecidas da escravidão, fica-se frequentemente com a impressão de que o
mesmo tem lugar no meio da indiferença geral.
Sem negar que isto seja, infelizmente, verdade em
grande parte, apraz-me mencionar o enorme trabalho que muitas congregações
religiosas, especialmente femininas, realizam silenciosamente, há tantos
anos, a favor das vítimas. Tais institutos atuam em contextos difíceis, por
vezes dominados pela violência, procurando quebrar as cadeias invisíveis que
mantêm as vítimas presas aos seus traficantes e exploradores; cadeias, cujos
elos são feitos não só de subtis mecanismos psicológicos que tornam as vítimas
dependentes dos seus algozes, através de chantagem e ameaça a eles e aos seus
entes queridos, mas também através de meios materiais, como a apreensão dos
documentos de identidade e a violência física. A atividade das congregações
religiosas está articulada a três níveis principais: o socorro às vítimas, a
sua reabilitação sob o perfil psicológico e formativo e a sua reintegração na
sociedade de destino ou de origem.
Este trabalho imenso, que requer coragem, paciência
e perseverança, merece o aplauso da Igreja inteira e da sociedade. Naturalmente
o aplauso, por si só, não basta para se pôr termo ao flagelo da exploração da
pessoa humana. Faz falta também um tríplice empenho a nível institucional:
prevenção, proteção das vítimas e ação judicial contra os responsáveis. Além
disso, assim como as organizações criminosas usam redes globais para alcançar
os seus objetivos, assim também a ação para vencer este fenômeno requer um
esforço comum e igualmente global por parte dos diferentes atores que compõem a
sociedade.
Os Estados deveriam vigiar por que
as respectivas legislações nacionais sobre as migrações, o trabalho, as
adoções, a transferência das empresas e a comercialização de produtos feitos
por meio da exploração do trabalho sejam efetivamente respeitadoras da
dignidade da pessoa. São necessárias leis justas, centradas na pessoa humana,
que defendam os seus direitos fundamentais e, se violados, os recuperem
reabilitando quem é vítima e assegurando a sua incolumidade, como são
necessários também mecanismos eficazes de controle da correta aplicação de tais
normas, que não deixem espaço à corrupção e à impunidade. É preciso ainda que
seja reconhecido o papel da mulher na sociedade, intervindo também no plano
cultural e da comunicação para se obter os resultados esperados.
As organizações intergovernamentais são
chamadas, no respeito pelo princípio da subsidiariedade, a implementar
iniciativas coordenadas para combater as redes transnacionais do crime
organizado que gerem o mercado de pessoas humanas e o tráfico ilegal dos
migrantes. Torna-se necessária uma cooperação a vários níveis, que englobe as
instituições nacionais e internacionais, bem como as organizações da sociedade
civil e do mundo empresarial.
Com efeito, as empresas [6] têm o dever não só de garantir aos seus empregados condições de trabalho
dignas e salários adequados, mas também de vigiar por que não tenham lugar, nas
cadeias de distribuição, formas de servidão ou tráfico de pessoas humanas. A
par da responsabilidade social da empresa, aparece depois a responsabilidade
social do consumidor. Na realidade, cada pessoa deveria ter consciência de
que «comprar é sempre um ato moral, para além de econômico».
[7]
As organizações da sociedade civil, por
sua vez, têm o dever de sensibilizar e estimular as consciências sobre os
passos necessários para combater e erradicar a cultura da servidão.
Nos últimos anos, a Santa Sé, acolhendo o grito de
sofrimento das vítimas do tráfico e a voz das congregações religiosas que as
acompanham rumo à libertação, multiplicou os apelos à comunidade internacional
pedindo que os diversos atores unam os seus esforços e cooperem para acabar com
este flagelo.[8] Além
disso, foram organizados alguns encontros com a finalidade de dar visibilidade
ao fenômeno do tráfico de pessoas e facilitar a colaboração entre os diferentes
atores, incluindo peritos do mundo acadêmico e das organizações internacionais,
forças da polícia dos diferentes países de origem, trânsito e destino dos
migrantes, e representantes dos grupos eclesiais comprometidos em favor das
vítimas. Espero que este empenho continue e se reforce nos próximos anos.
Globalizar a fraternidade, não a escravidão nem a
indiferença
6. Na sua atividade de «proclamação da verdade do
amor de Cristo na sociedade», [9] a Igreja não cessa de se empenhar em ações de caráter caritativo
guiada pela verdade sobre o homem. Ela tem o dever de mostrar a todos o caminho
da conversão, que induz a voltar os olhos para o próximo, a ver no outro – seja
ele quem for – um irmão e uma irmã em humanidade, a reconhecer a sua dignidade
intrínseca na verdade e na liberdade, como nos ensina a história de Josefina
Bakhita, a Santa originária da região do Darfur, no Sudão. Raptada por traficantes
de escravos e vendida a patrões desalmados desde a idade de nove anos, haveria
de tornar-se, depois de dolorosas vicissitudes, «uma livre filha de Deus»
mediante a fé vivida na consagração religiosa e no serviço aos outros,
especialmente aos pequenos e fracos. Esta Santa, que viveu a cavalo entre os
séculos XIX e XX, é também hoje testemunha exemplar de esperança[10] para
as numerosas vítimas da escravatura e pode apoiar os esforços de quantos se
dedicam à luta contra esta «ferida no corpo da humanidade contemporânea, uma
chaga na carne de Cristo».[11]
Nesta perspectiva, desejo convidar cada um, segundo
a respectiva missão e responsabilidades particulares, a realizar gestos de
fraternidade a bem de quantos são mantidos em estado de servidão. Perguntemo-nos,
enquanto comunidade e indivíduo, como nos sentimos interpelados quando, na vida
quotidiana, nos encontramos ou lidamos com pessoas que poderiam ser vítimas do
tráfico de seres humanos ou, quando temos de comprar, se escolhemos produtos
que poderiam razoavelmente resultar da exploração de outras pessoas. Há alguns
de nós que, por indiferença, porque distraídos com as preocupações diárias, ou
por razões econômicas, fecham os olhos. Outros, pelo contrário, optam por fazer
algo de positivo, comprometendo-se nas associações da sociedade civil ou
praticando no dia-a-dia pequenos gestos como dirigir uma palavra, trocar um
cumprimento, dizer «bom dia» ou oferecer um sorriso; estes gestos, que têm
imenso valor e não nos custam nada, podem dar esperança, abrir estradas, mudar
a vida a uma pessoa que tateia na invisibilidade e mudar também a nossa vida
face a esta realidade.
Temos de reconhecer que estamos perante um fenômeno
mundial que excede as competências de uma única comunidade ou nação. Para
vencê-lo, é preciso uma mobilização de dimensões comparáveis às do próprio fenômeno.
Por esta razão, lanço um veemente apelo a todos os homens e mulheres de boa
vontade e a quantos, mesmo nos mais altos níveis das instituições, são
testemunhas, de perto ou de longe, do flagelo da escravidão contemporânea, para
que não se tornem cúmplices deste mal, não afastem o olhar à vista dos
sofrimentos de seus irmãos e irmãs em humanidade, privados de liberdade e
dignidade, mas tenham a coragem de tocar a carne sofredora de Cristo, [12] o Qual Se torna visível através dos rostos inumeráveis daqueles a
quem Ele mesmo chama os «meus irmãos mais pequeninos» (Mt 25,
40.45).
Sabemos que Deus perguntará a cada um de nós: Que
fizeste do teu irmão? (cf. Gn 4, 9-10). A globalização da
indiferença, que hoje pesa sobre a vida de tantas irmãs e de tantos irmãos,
requer de todos nós que nos façamos artífices duma globalização da
solidariedade e da fraternidade que possa devolver-lhes a esperança e levá-los
a retomar, com coragem, o caminho através dos problemas do nosso tempo e as
novas perspectivas que este traz consigo e que Deus coloca nas nossas mãos.
Vaticano, 8 de Dezembro de 2014.
FRANCISCUS
[1] N. 1.
[2] Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2014, 2.
[3] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 11.
[4] Cf. Discurso à Delegação internacional da Associação de Direito Penal (23 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano(ed. portuguesa de 30/X/2014), 9.
[5] Discurso aos participantes no Encontro mundial dos Movimentos Populares (28 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 06/XI/2014), 9.
[6] Cf. Pontifício Conselho «Justiça e Paz», La vocazione del leader d’impresa. Una riflessione (Milão e Roma, 2013).
[7] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 66.
[8] Cf. Mensagem ao Senhor Guy Rydes, Director-Geral da Organização Internacional do Trabalho, por ocasião da 103ª sessão da Conferência da O.I.T. (22 de Maio de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 05/VI/2014), 7.
[9] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 5.
[10] «Mediante o conhecimento desta esperança, ela estava “redimida”, já não se sentia escrava, mas uma livre filha de Deus. Entendia aquilo que Paulo queria dizer quando lembrava aos Efésios que, antes, estavam sem esperança e sem Deus no mundo: sem esperança porque sem Deus» ( Bento XVI, Carta enc. Spe salvi, 3).
[11] Discurso aos participantes na II Conferência Internacional « Combating Human Trafficking: Church and Law Enforcement in partnership» (10 de Abril de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 17/IV/2014), 8; cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 270.
[12] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 24; 270.
[2] Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2014, 2.
[3] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 11.
[4] Cf. Discurso à Delegação internacional da Associação de Direito Penal (23 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano(ed. portuguesa de 30/X/2014), 9.
[5] Discurso aos participantes no Encontro mundial dos Movimentos Populares (28 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 06/XI/2014), 9.
[6] Cf. Pontifício Conselho «Justiça e Paz», La vocazione del leader d’impresa. Una riflessione (Milão e Roma, 2013).
[7] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 66.
[8] Cf. Mensagem ao Senhor Guy Rydes, Director-Geral da Organização Internacional do Trabalho, por ocasião da 103ª sessão da Conferência da O.I.T. (22 de Maio de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 05/VI/2014), 7.
[9] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 5.
[10] «Mediante o conhecimento desta esperança, ela estava “redimida”, já não se sentia escrava, mas uma livre filha de Deus. Entendia aquilo que Paulo queria dizer quando lembrava aos Efésios que, antes, estavam sem esperança e sem Deus no mundo: sem esperança porque sem Deus» ( Bento XVI, Carta enc. Spe salvi, 3).
[11] Discurso aos participantes na II Conferência Internacional « Combating Human Trafficking: Church and Law Enforcement in partnership» (10 de Abril de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 17/IV/2014), 8; cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 270.
[12] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 24; 270.
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